Morangos Mofados - Préfacil

segunda-feira, 21 de novembro de 2011 0 comentários
Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo.
Clarice Lispector: A hora da estrela


Achava belo, a essa época, ouvir um poeta dizer que escrevia pela mesma razão por que uma árvore dá frutos. Só bem mais tarde viera a descobrir ser um embuste aquela afetação: que o homem, por força, distinguia-se das árvores, e tinha de saber a razão de seus frutos, cabendo-lhe escolher os que haveria de dar, além de investigar a quem se destinavam, nem sempre oferecendo-os maduros, e sim podres, e até envenenados.
Osman Lins: Guerra sem testemunhas

HOJE NÃO É DIA DE ROCK
Heloísa Buarque de Holanda

Uma carta de Caio Fernando Abreu conta o processo. Quando penso que havia fechado meu expediente sobre o tema de criação de contracultura! desbunde! balanços! críticas! autocríticas e aponto o lápis para trabalhar “novos capítulos de nossa história cultural”, eis que cai, em minha mesa, um livro irrecusável: Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu. Disfarço a curiosidade, adio a leitura, rendo-me afinal à tentação. Não sei bem por que, lembro-me do Teatro Ipanema, casa lotada aplaudindo freneticamente a peça de José Vicente, Hoje é dia de rock, na primavera-verão de 1971. De certa forma, Morangos mofados fala de uma história que se configurava oficialmente, no Rio, naquele teatro e naquele verão.
A peça - rito de passagem da geração desbunde - falava da grande mudança para a Fronteira, de um incontido desejo de sair, de se desligar de um mundo “condenado”. Encenava, em meio a um estonteante trabalho visual e sonoro que traduzia plasticamente a liturgia psicodélica da época, um vôo em direção às margens, no melhor estilo da utopia drop-out. “Quem nasceu para voar, voe no rumo do céu. Quem nasceu para cantar, cante. Teus pássaros viajam voando no espaço estreito da América, contra sertões, procurando ar, cor, luz, flor, pão. Pássaros viajam ao redor da Máquina, contra a Máquina, antes da Máquina e depois” - sentenciava Inca, a vidente, em um momento- chave da peça. É assim que Isabel, regida pela visão da Fronteira, resgata a imagem de Elvis Presley (o grande e mágico motor dessa história), que irrompe em cena de lambreta e materializa a possibilidade do seu vôo: “Iloveyou... Nunca esperei que um dia, numa tarde de sábado, você podia sair de dentro do meu rádio para dizer olhando para mim: I love you. Quando eu queria sair de Minas e não sabia como... Como se eu fosse uma estrela caindo do céu, longe. Então eu imaginava você vindo, como eu te imaginava”.
No texto e na encenação, a presença da fé fundamental que iluminou o projeto libertário da contracultura. A fé que orientou o sonho cujo primeiro grande impulso vem dos “rebeldes sem causa” de Elvis e Dean; que se define em seguida com a “grande recusa” da sociedade tecnocrática pelo flowerpower ao som dos Beatles e dos Rolling Stones; e que ganha, de forma inesperada, uma nova e mágica força no momento em que Lennon declara drasticamente: o sonho acabou. No Hoje é dia de rock, se não me falha a memória, um forte contingente jovem vislumbrou formalmente a viagem para o outro lado da margem, que oferecia naquela hora uma atração irresistível enquanto espaço de construção de um possível novo mundo, stawberryfieldsforever. Pois bem, Morangos mofados fala desse tempo, de seus atores, das expectativas e dos resultados dessa viagem. Assim como numerosos relatos, que ultimamente vêm surgindo, falam da outra opção da viagem dessa geração, a luta armada.
Neste ponto, acho oportuno pensar algumas distinções no interior de cada um desses campos de experiência. Se é verdade que no final dos anos 1960 apresentavam-se para a juventude radicalizada dois caminhos - o desbunde ou a luta armada -, a avaliação mais objetiva dessas formas de contestação não pode esquecer certas nuances. O primeiro momento do projeto da contracultura no Brasil, tal como foi sentido pelo tropicalismo e principalmente pelo teatro de José Celso Martinez Corrêa e que se definia como um projeto libertário e anárquico de cores político-revolucionárias e cujas origens remontam aos rachas no interior do CPC (Centro Popular de Cultura, UNE), diferencia-se significativamente do desbunde-70, de cores pacíficas, que é levado adiante pela cultura jovem de caráter alternativo. Da mesma forma, cabe uma clara distinção entre o projeto de luta armada de Marighela, gerado pelos rachas com o PCB (Partido Comunista Brasileiro), e a opção guerrilheira tal como foi sentida e experimentada pelos segmentos de estudantes secundaristas que a ela aderiram. A distinção é importante na medida em que, tanto nos casos da luta armada quanto no da contracultura, a história daqueles primeiros ainda está para ser feita e contada, o que representa uma séria dificuldade para a avaliação crítica do significado dos movimentos contestatórios que floresceram nos anos 1970.
Voltando aos Morangos mofados, o que primeiro chama a atenção nesse livro é um certo cuidado, uma enorme delicadeza em lidar com a matéria da experiência existencial de que fala. Ao contrário da maioria dos relatos recentes sobre a opção guerrilheira, cuja palavra de ordem é a autocrítica irônica, e que apresentam, às vezes até didaticamente, novos e seguros rumos políticos, Caio não procura analisar ou mesmo avaliar um caminho acabado (ou interrompido). Não se trata de revisar uma opção de intervenção. Apesar da tentativa de olhar com certo distanciamento histórico-existencial a viagem do desbunde, Morangos não deixa de revelar uma enorme perplexidade diante da falência de um sonho e da certeza de que é fundamental encontrar uma saída capaz de absorver, agora sem a antiga fé, a riqueza de toda essa experiência.
Mansamente, ao mesmo tempo muito próximo e muito distante, Caio aplica-se na definição de gestos, falas, sentimentos que, aos pedaços, começam a traçar o painel de um momento da história de vida de uma geração. Seu foco não comporta um julgamento de valor, nem parecem caber aqui teses que critiquem a validade dessa experiência ou identifiquem “erros de encaminhamento” ou “acertos estratégicos”. Ao contrário, o movimento crítico se faz no sentido de flagrar uma incerta dor ao lado de um gosto amargo de morangos mofando que atravessa insistentemente os encontros e desencontros de seus personagens. Em lugar de teses (que, em geral, sem conflitos e contradições, permitem a substituição de um “programa” por outro), Caio escolhe o caminho de pequenas provas de evidência onde, uma vez extraído o sentimento de época, consegue fazer aflorar dramaticamente os limites e os impasses daquela experiência, sem que com isso encubra seus conteúdos de busca e desejo de transformação.
Se em Hoje é dia de rock a força da crença no valor absoluto da utopia iluminava a saída para a Fronteira, os Morangos de Caio, com uma irresistível atualidade, modificando caminhos percorridos, põem em cena uma possível pontuação para essa história, ou, como esclarece em “Os companheiros”: “Uma história nunca fica suspensa, ela se consuma no que se interrompe, ela é cheia de pontos finais”. Um desses pontos finais, que parece ser o tema do livro, é a morte de Lennon. Morte cujo sentido Caio nos revela aos poucos através de longos corredores, contatos difíceis, gestos repetidos, silêncios recorrentes e, principalmente, num profundo e instantâneo entendimento entre desconhecidos, cuja coreografia é encenada no conto “O dia em que Júpiter encontrou Saturno”. Livro afora, multiplicam-se esses momentos mínimos de encontros e dispersões cujo eixo é o gosto renitente de um certo mofo que se espalha no ar. Em background, o som de John Lennon e Paul McCartney em Strawberry Fields Forever.
Não há dúvida de que Caio fala da crise da contracultura como projeto existencial e político. Do resgate sofrido pela utopia de um mundo alternativo centrado na recusa selvagem da racionalidade e resgatado pelos princípios do prazer e pela realidade espontânea do aqui e agora. Em Morangos mofados a viagem da contracultura é refeita e checada em seu ponto nevrálgico: a questão da eficácia do seu “sonho-projeto”. Como diz o personagem em “Transformações”: “Alguma coisa explodiu, partida em cacos. A partir de então, tudo ficou mais complicado. E mais real”. O que absolutamente não impede que o autor não abandone o “direito adquirido” da percepção plástica e sensorial própria da trap da contracultura, percepção que informa mesmo os contos que não se referem diretamente a “velhas histórias coloridas”, como “Sargento Garcia”, “Aqueles dois” e “Terça-feira gorda”.
Mas, insisto, a originalidade do seu relato nasce do partido que toma como autor e personagem. Através da aparente isenção no recorte de situações e sentimentos, na maior parte dos casos engendrado por uma sensibilíssima acuidade visual (e muitas vezes musical), cresce e se refaz a história de uma geração de “sobreviventes” (que dão nome ao conto-chave do livro). Aqueles sobreviventes “vagamente sagrados” de Marx, Marcuse, Reich, Castafleda, Laing: “Bolsas na Sorbonne, chás com Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the sun, little darling-, 70 em Nova York dançando disco-music no Studio 54; 80 a gente aqui, mastigando essa coisa sem conseguir engolir nem cuspir fora este gosto azedo na boca”. No conto-título do livro, uma última e inútil tentativa de socorrer John Lennon, um certo adeus às fantasias apocalípticas e, sobretudo, a clareza quanto à urgência de um novo projeto (sonho) que inclui um acerto de contas com o real.

Texto publicado no jornal do Brasil em 24 e 31/10/1982 


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